UM FAZENDEIRO CONTRA O LATIFÚNDIO

 

PAULO MICELI

Através de documentos recentemente descobertos pelo autor, este artigo conta as condições, pouco conhecidas hoje em que eram admitidos os emigrantes europeus que vinham para São Paulo no século 19. No caso, trata-se de um grupo de portugueses, contratados por um fazendeiro residente no Brasil, mas também português, que tinha a singularidade de ser favorável ao trabalho assalariado, contra a propriedade latifundiária e com ideias bem claras sobre a preservação do meio ambiente. Mas ao mesmo tempo, seus patrícios e empregados deveriam seguir um regulamento igual ao que vigorava para os escravos.

Quantas vezes o pesquisador não se surpreende quando lhe vem às mãos algum documento importante que não era bem o que procurava, mas que parece ganhar vida e saltar do acervo para mostrar-se — vaidosamente — como valiosa e expressiva testemunha dos trabalhos e ideias de pessoas que viveram em outras épocas? Coisas do ofício, coisas do acaso... Assim foi que, dentre os documentos raros existentes no Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas — CMU/UNICAMP, surgiu um interessante Opúsculo sobre a Colónia Nova Louzã — fundada por Elisário de Carvalho Monte-Negro em 1867. Seu autor, o proprietário Monte-Negro, descreve com entusiasmo a propriedade:

«Esta fazenda acha-se linda e vantajosamente situada no sopé d'uma extensa e vistosa colina. Do centro das casas corre uma rua em linha recta ao cafezal, que mede 150 braças, orlada de ambos os lados de arvores frutíferas e arbustos. De um lado acha-se a collina revestida d'uma linda vinha que contém 5.000 pés de parreira ou videira, e que no próximo anno deve duplicar o seu número. Da outra margem da rua acha-se o terreno coberto de gramma, que serve de pastagem aos animais da fazenda.

A parte mais elevada da coluna acha-se coroada d'um extenso cafezal, e ao longo, como que servindo de moldura a este pittoresco quadro, na montanha mais elevada da fazenda, vê-se outro lindo cafezal circulado de magestosa floresta virgem, menos na sua base.

Em frente ás casas, na extrema do terreiro, corre placidamente o ribeiro — Arouce, — cujas águas servem de força motriz á machina de beneficiar algodão, aos moinhos e aos monjollos».[Opúsculo sobre... cit., ed. Tipografia da Gazeta de Campinas, 1872, p. 6. João Elisário de Carvalho Monte-Negro chegou ao Brasil em 1840, vindo da Lousã, Portugal].

A Colónia Nova Lousã localizava-se na «freguesia do Espírito Santo do Pinhal, município e comarca da cidade de Mogy-mirim, de onde dista tres léguas», e foi instalada originalmente numa área de 200 alqueires, adquirida por Monte-Negro em 25 de Janeiro de 1867, «como consta da escriptura publica passada no livro de notas do escrivão do juizo de paz da freguesia de Mogy-guassú» [Nas citações deste artigo foram respeitadas a ortografia e a pontuação originais], possuindo o dobro dessa área em 1872, quando editado o Opúsculo.

As razões desse sucesso são apontadas pelo fazendeiro:

«O systhema, pois, adoptado no estabelecimento, para a retribuição do serviço, é o salário mensal, o único systhema que deixa de produzir descontentamentos nos colonos, causar ou dar azo a queixas e até a sérios motins, como tem sido exemplo vivo algumas colonias d'esta bella provincia. O immigrante, que vem justo por salario, já sabe qual o interesse, que deve auferir, deixando de ser imbuido de promessas artificiosas, como é norma empregar-se para com aquelles, que são contractados, segundo o systhema de parceria, que, salvo raras e honrosas excepções, só tem servido para desacreditar a colonisação na Europa» [Op.cit., p.2].

Apesar dessa triste fama que as fazendas de café espalhavam na Europa, o sistema de parceria continuava determinando as relações de trabalho entre o fazendeiro e os colonos, e quem o condena, paradoxalmente, é o próprio Monte-Negro:

«Chega um colono á provincia e entra na colonia, supponhamos, com uma divida de 150$000. O fazendeiro, em regra, faz-lhe entrega de certo e determinado numero de pés de café, já cansados ou velhos, em terreno baixo, e por conseguinte mais sujeito a acção destruidora da geada.

No fim do anno o pobre colono, em vez de ter amortisado a sua divida, augmentou-a consideravelmente, porque a geada queimou-lhe o cafezal e elIe para poder subsistir e sua familia, teve de recorrer á bolça do proprietário e augmentar, portanto, o seu debito e aggravar a sua triste situação» [Op. cit., p. 3].

O fazendeiro continua a sua crítica às relações de trabalho nas fazendas, lembrando que «para adoptar-se o systhema de parceria, é indispensável que exista uma completa confiança entre o fazendeiro e o colono, e entre pessoas, que não se conhecem como ha de dar-se esta circunstancia? A confiança, pois, é substituida pela desconfiança»[Op. cit., p. 4].

Factores objectivos numa relação de profunda desigualdade, as dívidas no sistema de parceria conduziam o colono e a sua família a uma situação de escravidão, «estendida à raça branca», como reclamaria mais tarde um viajante italiano, num livro raro editado em Turim, em 1926 [Magrini, L. — In Brasile. Torino, Pierro Gobetti Editore, 1926, p. 18].

Monte-Negro também condenava a escravidão e, transformando-se numa espécie de precursor involuntário de importante corrente historiográfica contemporânea, achava positiva a transição para o «trabalho livre» representada, por exemplo, pela «sábia e humanitária lei de 28 de Setembro de 1871 [Trata-se da Lei do Ventre-Livre], que tão profundo golpe deu na escravidão, e que considera-se como a precursora de sua completa emancipação» [Opúsculo, op, cit., p. 13]. Para ampliar os seus efeitos, contudo, a Lei deveria ser «acompanhada de perto, e com verdadeiro zelo e empenho, de medidas a bem da imigração » [Op. cit., p. 13]. Somente esse incentivo à emigração poderia reduzir os efeitos negativos da «transição por que está passando a lavoura, cuja causa principal talvez seja a falta de braços» [Op. cit., p. 15].

O problema é que o emigrante, além de pagar pesados tributos à desigualdade social, também por causa dela era vitimado pela acção governamental. Do lado brasileiro, pelas tão conhecidas relações que o governo imperial (e posteriormente o republicano) mantinha com os fazendeiros. Do lado português, por razões semelhantes, não tendo os pobres outra saída além da emigração, pois «se o Governo de Portugal entende que ao paiz é inconveniente a immigração para o estrangeiro, proporcione aos filhos do povo meios de melhor subsistência, fazendo abrir novas vias de communicação, decretando o esgoto de tantos pantanos, que inutilizam grande parte de terrenos que podiam ser aproveitados em vantagem da agricultura e riqueza particular e publica, além de outras medidas de que pôde lançar mão em vista de melhorar a condição dos proletarios» [Op. cit., p. 12].

 

Questão técnica e política

Para o fazendeiro, o nível técnico da agricultura que, em geral, se praticava no Brasil agravava a situação de crise do sector e reduzia ainda mais a produtividade.

«Além de falta de braços, uma das causas que mais actua sobre o estado menos animador da lavoura, do que elle poderia ser, é a falta de instrucção theorica e practica do geral dos lavradores do paiz, que não se afastam, genericamente fallando, do trabalho rotineiro.

Derrubadas de magestosas e ricas florestas, contendo inapreciaveis e abundantes madeiras de construcção, e de mattas novas, geralmente chamadas capoeiras, em seguida o fogo, que deixa tanta riqueza reduzida a cinzas, e mais tarde a enxada manual — eis em poucas palavras o systhema geralmente seguido nas lides da lavoura» [Op. cit., p. 15].

Naquele quadro de precária rotina, que ainda hoje predomina em muitas regiões do País, havia excepções, principalmente representadas pelas fazendas onde trabalhavam os imigrantes norte-americanos que após a guerra civil ocorrida nos Estados Unidos concentram-se nas regiões próximas às cidades paulistas de Santa Bárbara d'Oeste e Americana. Nessas fazendas, o uso do arado e mesmo da grade — indispensável para reduzir os efeitos das águas pluviais no esgotamento dos solos — já eram praticados, elevando a produtividade agrícola.

O baixo nível técnico da agricultura traduzia-se no baixo padrão de vida dos agricultores, agravado também pela ausência de mecanismos financeiros mantidos pelo governo para socorrê-los — principalmente aos pequenos proprietários — quando a crise crónica se agravava. Nesses momentos, viam-se na contingência de apelar para os agiotas que, naqueles tempos, aplicavam sobre os empréstimos uma «excessiva e onerosa taxa de um e um e meio por cento»[Op. cit., p. 17], o que devia ser elevado no século passado, mas não deixa de nos provocar um sentimento que se aproxima da inveja...

A respeito dessa questão, as opiniões de Monte-Negro aproximam-no de muitos empresários da actualidade, para quem é função precípua do governo arrecadar recursos de toda a sociedade para reduzir ou eliminar os riscos que deveriam ser inerentes a qualquer actividade económica:

«Uma das maiores e mais deploráveis causas, que se oppõem ao florescente progresso da lavoura, é a falta de um estabelecimento bancario-rural, onde o grande fazendeiro, ou o modesto lavrador, possa recorrer mediante a garantia de sua propriedade agricola quando tem necessidade de dinheiro, não só para o custeio diário do seu estabelecimento, como também para a construcção de obras indispensáveis e mesmo para a acquisição de braços» [Op. cit., p. 17].

Para nós, interlocutores tardios do fazendeiro português João Elisário de Carvalho Monte-Negro, as críticas à actuação do Estado podem até parecer razoáveis. Podemos estranhar um pouco, entretanto, a sua condenação ao sistema de parceria, poderoso sustentáculo da chamada economia cafeeira, e atribuir a razões «humanitárias» o entusiasmo que ele demonstrava em relação à transição, impulsionada pela «emancipação da escravatura (...), cujo acto final ou epílogo não se fará esperar por muitos annos» [Op. cit., p. 18]. Mas é nas páginas finais do Opúsculo que essas ideias aparentemente fora de lugar recebem poderoso acréscimo, quando o que se crítica é o próprio alicerce que sustenta os problemas essenciais da agricultura brasileira, não só do século XIX como dos dias actuais, a despeito de todo o estardalhaço que acompanhou os dispendiosos e pouco renovadores trabalhos da recentíssima Assembleia Nacional Constituinte e da Constituição por ela elaborada: a grande propriedade:

«O systhema de pareceria está condemnado. O de empreitada apenas é em parte admissivel. O único que pôde substituir e auxiliar a lavoura do paiz é o de salario, adaptado em a nossa Colonia.

Este e identicos estabelecimentos serão as escolas, onde se educarão os trabalhadores ruraes, para dahi a poucos annos sahirem com o seu peculio, comprarem modestas propriedades e fundarem a pequena lavoura. Só esta pôde salvar o Brasil.

A grande propriedade já teve a sua epocha. Foi um meteóro, cujo rasto breve de todo desapparecerá.

Ainda ha pouco mais de quatro annos muita gente boa e de juizo agudo nos chamou de — utopista.

Onde estará actualmente a utopia, em nós, ou naquelles que professam idéias contrarias ás nossas em materia de trabalho livre?

O futuro o dirá» [Op. cit., p. 18-19].

Só a pequena propriedade pode salvar o Brasil... Advertência poderosa que apesar do tempo transcorrido soa tão actual, em meio à mancha de pobreza que, longe de conter-se nos limites do espaço agrário, avança sobre a Cidade, fazendo dela o cenário onde se vive e se representam os actos mais expressivos da concentração da riqueza e da desigualdade social que lhe é tributária.

Não é preciso muito esforço para verificar que muitas das «profecias» de Monte-Negro se realizaram. No final do século XIX, por força principalmente da resistência crescente dos negros, a transição a que ele aludia se consumou, e novos conflitos do mundo do trabalho foram projectados para o século seguinte — o nosso —, de quem João Elisário esperava um veredicto. Mais uma vez, a história vira um tribunal do futuro, invocado para apor o sinal da condenação ou absolvição nos actos presentes, talvez pela sensação poucas vezes confessada de que esses actos estendem para o futuro seus efeitos, cobrando pesados tributos das gerações que se tornam herdeiras involuntárias de todas as formas de injustiça social ou insânia governamental que, em corrente, se encarregam de transmitir para diante, não na História — essa ideia vaga, transformada em oráculo de tantos desatinos —, mas na crua (e dura) realidade do dia-a-dia.

O autor desta modesta apresentação do Opúsculo não se põe como porta-voz desse futuro a quem Monte-Negro apelava para confirmar a razão de suas concepções, mesmo porque, evidentemente, era a interlocutores de seu tempo que ele se dirigia, mas não se pode reprimir um riso amargo quando, daqui do futuro, se ouve dizer que a grande propriedade foi um meteoro, cujo rasto desapareceria rapidamente, tão rapidamente quanto o do cometa Halley, que tantos olhos inocentes procuraram — em vão — no céu desalumiado de suas esperanças.

 

Regulamentando a vida

Para saber como era o dia-a-dia na Colónia Nova Lousã, não há relatos de testemunhas presenciais, a não ser do próprio Monte-Negro e algumas matérias jornalísticas inseridas no Opúsculo, todas elogiosas, como seria de se esperar. E mesmo o livro de Ricardo Artigiani, Mogi Guaçu — 3 séculos de história, s.c.e., s.d., que não é livro de historiador profissional, mas constitui-se num dos raros trabalhos dedicados à história daquele município, dedica à colónia onze pouco expressivas linhas.

Apesar disso, é possível uma aproximação à vida quotidiana da fazenda. Espaço do trabalho, espaço de normas disciplinadoras das relações sociais que sustentam o mundo da produção, a vida dos trabalhadores da colónia era organizada por um regulamento «administrativo e policial», cuja nova versão vem inserida no documento elaborado por Monte-Negro.

Antes de fazer a apresentação do regulamento, convém saber quem eram os trabalhadores que formaram o núcleo original da propriedade:

«No dia 6 de Fevereiro daquelle anno (1867) entraram na nova Colonia os primitivos moradores, em numero de 30, inclusivamente o seu proprietario e fundador.

O numero actual de moradores do estabelecimento eleva-se a 80, entre homens, mulheres e creanças, sendo algumas já nascidas e baptisadas na Colonia.

Naquelle numero as comprehendem alguns artistas, carpinteiros, pedreiro, ferreiro, sapateiro, etc., sendo todos os empregados da casa naturaes da villa da Louzã, em Portugal, de onde também é o proprietário do estabelecimento, que daquella formosa terra sahiu em demanda do Brasil, faz hoje 32 annos» [Op. cit., p. 1-2].

Esse regulamento compunha-se de 26 artigos, onde era assegurado o poder maior do «Director e Proprietario da Colonia» — toda a vida dos trabalhadores era disciplinada em função de direitos e obrigações; tempo de trabalho e tempo de descanso; castigos e recompensas; hora de acordar, rezar e adormecer; enfim, um cuidadoso arranjo estabelecido para garantir que o pêndulo do Bem e do Mal oscilasse rigorosamente programado para garantir o sucesso da empresa.

Por isso, o trabalho começava cedo. Quando rompia o dia, o sino dava o «signal de Ave Maria, e um quarto de hora depois dará o signal para tomar-se café, findo o qual seguir-se-ha para o trabalho» (Art. 8.º). As horas de quartéis ou refeições variavam de acordo com as estações do ano, o mesmo ocorrendo com o descanso; uma hora, em Outubro e Novembro; uma hora e meia, em Dezembro e Janeiro; uma hora, novamente, em Fevereiro e Março. «Nos Outros seis mezes do anno, em que não ha séstas, os empregados terão 1/2 hora para o almoço, e 1/2 dita para o jantar» (Art. 10.º). Não se trabalhava aos domingos e dias-santos, «salvo em serviço urgente» (Art. 11.º).

A remuneração dependia do sexo, tempo de serviço e idade: aos homens, 14$ rs/mês, no primeiro ano, 15$ rs/mês, no segundo ano, e 16$ rs/mês a partir daí. As mulheres recebiam 7$ rs/mês, no primeiro ano, e 8$ rs/mês a partir daí, «exceptuando-se as mulheres que estiverem alimentando filhos, em cujo período perceberao apenas a razão de 6$ rs por mês» (Art. 7.º). A remuneração dos menores seguia critérios vagos, dependendo de «suas habilitações». Aqui, um dado curioso: a assembleia dos empregados, em voto secreto, sugeria a remuneração e o valor mais votado seria adoptado pela empresa. (Art. 17.º).

A representatividade na assembleia era estendida a todos os empregados maiores de 18 anos, se fossem homens, e 16 anos, no caso das mulheres (art. 3.º). Dispondo de maioria absoluta, qualquer colono poderia convocar a assembleia, por exemplo, para recorrer de alguma multa ou pena que considerasse injusta, sendo sempre as decisões tomadas por voto universal e secreto. Independentemente das disposições legais do Império, salvo em caso de maiores ofensas às leis do País, os colonos estavam sujeitos a uma justiça própria, administrada pela assembleia, que decidia sobre «qualquer questão mais grave que se suscitar na Colonia entre os empregados da mesma». (Art. 2.º).

Além de outros detalhes menores, o Novo regulamento administrativo e policial da Colónia Nova-Louzá [Op. cit., p. 20-26] estabelecia que, após seis anos de serviço, caso o colono desejasse retornar a Portugal, a passagem Santos-Lisboa seria paga pela empresa; o acerto de contas entre o colono e a administração seria feito anualmente; a limpeza dos quartéis, em sistema de rodízio, era de responsabilidade dos trabalhadores e a frequência à escola, franqueada ao conjunto dos colonos, era obrigatória aos menores entre 7 e 14 anos, «salvo se seus superiores a isso se oppuzerem» (Art. 14.º).

 

É expressamente proibido...

A artigo 24 do regulamento estabelecia uma série de proibições que dão bem uma ideia daquele universo social que se pretendia exemplar, constituindo-se uma espécie de síntese de valores e critérios objectivos destinados a cerrar os caminhos de quaisquer desvios que pudessem comprometer o funcionamento daquele mecanismo esquadrinhado e rigorosamente controlado. Pelas suas disposições, ficamos sabendo que na Colónia Nova-Lousã era «expressamente prohibido:

 

1.º Dar pancadas em qualquer pessoa dentro da fazenda, embora seja estranho a ella. (...)

2.º Provocar barulhos, dirigir ameaças ou palavras consideradas offensivas, a quem quer que fôr. (...)

3.º Tirar qualquer qualidade de fructa, legume ou coisa que o valha, quer seja da fazenda, quer seja de empregados da mesma. (...)

4.º Fazer barulho á mesa, proferir palavras indecentes e tocar ou servir-se dos pratos dos companheiros. (...)

5.º Encontrando-se qualquer objecto extranho, conservalo em seu poder, sem que se entregue ao seu dono, e se este não fôr conhecido, ao feitor. (...)

6.º Servir-se de roupa alheia ou revistar caixa ou gavetas sem ordem de seus donos.(...)

7.º Sair do estabelecimento sem ordem do Chefe, e na sua falta, do feitor. (...)

8.º Fazer barulho ou assuada depois do toque de recolher, passear nos quartéis, de tamancos, fallar alto, tocar qualquer instrumento, ou proceder de qualquer modo que interrompa o silêncio e encommode os companheiros. (...)

9.º Deixar a ferramenta fóra do lugar marcado, e servir-se da ferramenta alheia sem ordem superior ou do possuidor. (...)

10.º Lançar mão de saccos da fazenda fóra do serviço do terreiro, e não os entregar ao feitor do terreiro depois do serviço feito. (...)

11.º Dar signaes falsos no sino, ou mesmo em horas próprias não se achando encarregado desse serviço, salvo em casos de incendio, ou ameaçando chuva, se houver café ou qualquer genero nos terreiros. (...)

12.ºJogar cartas ou qualquer jogo a dinheiro ou a coisa que o valha. (...)

13.º Não conservar limpeza nos quartéis, em volta das casas, nos terreiros e caminhos proximos ás casas. (...)

14.º Fazer uso de faca, tanto em casa como no serviço, salvo em serviço especial, que demande esse instrumento. (...)

15.º Também é prohibido o receber ou conservar nos respectivos quartéis, depois do toque de Ave Maria, qualquer pessoa que não fizer parte do estabelecimento, salvo precedendo licença, ou se for hospede da casa.» (...)

 

Todas essas disposições, cuja transgressão previa penas as mais variadas, nos parecem curiosas, oscilando entre a ingenuidade e o rigor policial, com todos os seus exageros disciplinares e punitivos. Fazem pensar num mundo planificado em todos os seus detalhes, posto além dos limites do acaso e das circunstâncias fortuitas. Fazem pensar num espaço externo à própria história, que o absorveu e dissolveu — antes de fazer o seu elogio —, transformando-o apenas numa teimosa lembrança de pessoas que não podemos enxergar, trazidas nas rotas várias vezes seculares das caravelas para trabalhar nos verdes mares das plantações e sucumbir em riquezas que nunca foram de quem as navega. [Artigo publicado em "D.O. Leitura". São Paulo, 9(103) Dez. 1990, p. 2 e 3; "Arunce. Revista de Divulgação Cultural". Lousã, 5/6 (Jan./Dez. 1991), p. 25-33, Sep.].