"....nada disso impede que seja também um homem abrasado no fogo do amor da humanidade, como prova defendendo, sempre que pode, as grandes causas da emancipação dos escravos, da educação popular, todas as causas santas, de cuja resolução está suspenso o futuro da civilização."

 

 

JOÃO ELISARIO DE CARVALHO MONTE-NEGRO

[Manuel Pinheiro Chagas]

 

A civilização, essa grande religião do século XIX, essa filha do cristianismo, única vergôntea, de entre as muitas que se entroncaram na cruz do Golgota, que atravessou os tempos sem degenerar da árvore mãe regada pelo sangue generoso de Jesus, tem, como todas as religiões, os seus grandes iniciadores, e os seus apóstolos fecundos, os que desfraldam primeiro ao vento o lábaro da ideia, e os que depois o sustentam e o defendem no ardor das refregas e os profetas e, os discípulos, os que acendem no horizonte dos séculos a chama vivificadora que os ilumina, e os que vão, missionários de luz, levar de porta em porta uma parcela do fogo sagrado. Para aqueles muitas vezes o martírio estrondoso, e em seguida a augusta apoteose, para aqueles o sarcasmo colossal das multidões apinhadas em volta do cadafalso, e depois a veneração da posteridade, as páginas douradas da história, para aqueles a cicuta de Socrates, que é a condenação da Grécia, a Cruz do Homem-Deus que é a etema proscrição da grei judíaca, a fogueira de Savonarola que é a desonra de um pontífice, o patíbulo de Sidney que é o martírio de um rei; para estes a sombra, o ouvido, o silêncio das catacumbas, os mistérios dos autos de fé, a ignominiosa obscuridade da forca.

Isto quando sucumbem; quando triunfam menos ainda. A glória deixa-se fascinar pelo estrondo e quase sempre despreza as qualidades modestas. A turba de soldados que formam o estado maior de um conquistador deixam ficar estampado nas crónicas o seu nome embebido em sangue. Passaram na terra para tingir de vermelho os campos e os rios, para obscurecer com a fumarada da pólvora a face resplandecente do sol, para passear o facto assolador pelas aldeias desamparadas, pelas pávidas cidades, e contudo esse montão de ruínas transforma-se para os vindouros em pedestal glorioso onde a sua estátua campeia, os gemidos das viúvas e dos órfãos são como que o hosana tremendo que ensina o seu nome aos ecos da posteridade, da posteridade que mal conhece os que atravessam o mundo, enxugando lágrimas, derramando luz, sacudindo do regaço benfazejo o oiro transformado em rosas do Paraíso. Para esses não há estátuas na praça pública, túmulos pomposos nas catedrais, comemoração nas efemérides históricas; é verdade que tem em compensação, como o velho de Gray, a lousa musgosa no cemitério da aldeia, o rústico epitáfio, as flores com que a mão piedosa daqueles a quem amou lhe cinge a cruz singela, e ao descair da tarde um raio do sol que lhe doira com uma auréola a campa, a brisa da primavera que lha inunda de perfumes, como se um olhar de Deus e um sorriso da natureza quisessem consolar o justo do esquecimento dos homens.

Oh! mas se é grande a missão dos guias do progresso, dos evangelizadores da liberdade, dos arquitectos do templo social, dos videntes da Jerusalém celeste, não é a vossa menos sublime, semeadores, missionários, obreiros da ideia! Quando são chegados os tempos, quando a humanidade perdida nas trevas mendiga um raio de luz, quando o escravo ergue ao céu os pulsos roxeados pelas algemas, quando o pensamento, águia que aspira ao sol, se debate de encontro às grades da gaiola, quando o espírito humano, vagueando, como Ismael, no deserto da dúvida, pede a Jehovah um anjo de azas fulgidas que faça brotar do areal ressequido a fonte que o dessedente, surge então o homem predestinado, o profeta, o filosofo, o heresiarca mesmo porque a todos os grandes vultos da história Deus concedeu uma missão providencial, o utopista, o poeta, porque os sonhos do poeta, e os devaneios do utopista são as visões radiantes do futuro tenebroso para nós, mas que nas suas noites apocalípticas se lhe entremostra envolto numa luz vaporosa. Surge, e passa por entre as multidões, soltando ao vento a palavra regeneradora, isolado, melancólico, misterioso! Caminha, cingido de esplender, e deixa atrás de si um longo rasto de luz. Pensa e quando dá uma forma ao pensamento, quando a frase eloquente lhe irrompe dos lábios, ainda abrasada no fogo da inteligência, cadinho em que se elabora um mundo novo, corre um frémito nas veias dos povos, empalidecem os tiranos, vacilam nos altares as estátuas dos falsos deuses, ouve-se um rumor surdo de grilhões que tinem, roçando uns pelos outros, e as muralhas das bastilhas tremem como que ao sopro de um desconhecido vendaval! E ele, passa estranho a essas agitações que desperta, insensível a esses ecos tremendos da sua voz, de olhar vago, de fronte pensativa e curva! Assim o astro das noites passa no céu altivo, mudo, cismador indiferente, enquanto ao seu influxo agitam-se as vagas no Oceano, desabrocham no campo as flores nocturnas, e os sonhos na alma dos poetas.

Mas entre a multidão que o escutou atenta, alguns espíritos houve onde as centelhas dispersas da sua eloquência foram despertar uma chama serena e luminosa. Nesses terrenos abençoados caiu a palavra do reformador, e como a semente do Evangelho germinou e frutificou. A utopia sublime são eles que a realizam, da tarefa civilizadora são eles que se encarregam. Nada os faz recuar, nem a ingratidão, nem o martírio. Se o iniciador foi o homem do pensamento, eles são os homens da fé! Se aquele acendeu de súbito no horizonte a estrela alva e linda por onde se deve guiar a humanidade, estes, conduzidos por ela, irão, como os reis magos, depor as suas ofertas no berço redentor. Se aquele como Moisés, falou face a face com o Omnipotente, e escreveu à luz dos relâmpagos, o código da lei nova se arrancou os povos da escravidão do Egipto, mostrando-lhes a coluna de fogo que lhes resplende além, estes, como Josué, conduzi-los-ão à terra prometida. Estes são os missionários e os apóstolos, são os que tomam o bordão do viageiro, e vão anunciar ao mundo a boa nova, são aqueles enfim, que, pondo pedras sobre pedras, erguem o pedestal onde há-de campear a estátua dos iniciadores, enquanto os seus vultos pálidos e resignados se vão esvaindo a pouco e pouco da memória das gerações, até não serem mais do que umas linhas indistintas e semi-apagadas na tela vastíssima do passado.

II

O nosso século foi o dos grandes cometimentos. À luz radiante do sol da liberdade que resplandeceu sobre o mundo, todas as ideias generosas, que germinavam misteriosamente no espírito dos pensadores, desabrocharam e espanejaram-se, como as borboletas que irrompem das crisálidas, sacudindo as azas iriadas ao sol da primavera. Tem sido acusado o século XIX de céptico e de materialista, e a acusação vai tendo os seus visos de verdadeira, porque é sina fatal da imperfeição humana ver no fruto mais formoso o gérmen da corrupção. A sombra é inseparável da luz; a muita seiva, fazendo circular a vida no tronco da árvore, logo faz nascer uma chusma de parasitas que muitas vezes lhe enredam a folhagem, e lhe afogam o desenvolvimento. A tolerância religiosa, abrasando num amplexo único a humanidade inteira, fez nascer também o indiferentismo religioso em muitos espíritos acanhados, incapazes de compreenderem o sentimento moral na sua pureza abstracta, livre das prisões do dogma, e erguendo-se para o céu entre as nuvens do incenso que rescende nos turíbulos da criação. Mas não atribuamos às grandes teorias a falsa aplicação que delas foi feita, assim como não acusamos a flor pelo verme que se lhe abriga na corola.

Este século é grande, e bastou-lhe, para o ser, o modo amplo como compreendeu e pôs em prática essa palavra do Evangelho, conservada por muito tempo no frontispício dos códigos religiosos, como uma utopia sublime e irrealizável: "Fraternidade". Dantes, por mais que resplandece o facho da civilização, sempre ficavam imensas no escuro umas criptas imensas, onde formigavam as turbas dos párias, dos esquálidos proscritos da sociedade, daqueles que passavam a sua vida tenebrosa, não aspirando à luz, mas descendo cada vez mais na espiral da sombra, passando da miséria ao crime, da ignorância à brutalizarão, percorrendo os círculos desse inferno, em cuja porta fulgurante o lema sinistro que proibia a esperança.

Às vezes um raio de luz penetrava nestes subterrâneos infectos, e o anjo da caridade vinha, todo perfume e esplendor, trazer palavras de consolação aos precitos, matar-lhes a fome, esconder-lhes os andrajos com a sua túnica radiante. Mas a visão celeste desaparecia, e voltavam as trevas mais fundas, porque os grandes da terra, os que lá por cima tripudiavam nas salas dos palácios soberbos, não podiam compreender que essa canalha vil da plebe tivesse os mesmos direitos que eles a respirar o ar livre, a gozar os dons de Deus, a sentar-se ao banquete da vida. Foram punidos por onde pecaram, e quando o terramoto social de 92, aluindo os palácios, abriu forçadamente as portas das masmorras, golfaram estas por entre as ruínas um bando de espectros lívidos, sanguinários, mais feras do que homens, famintos e carniceiros, devorados por todas as más paixões que os anjos das trevas tinham podido acender, durante esse cativeiro de séculos, no espírito das nações escravas.

Foi então que se ouviu a voz dos evangelizadores, bradando: "Luz! luz a jorros do palácio à choupana, do píncaro das montanhas ao antro das planícies, brotem por todos os lados as fontes caudais da instrução, combata-se corpo a corpo a hidra da miséria, não com a esmola que a alimenta, mas com as reformas que a destroem. Ataque-se a miséria como um inimigo social, como o Satanás da civilização, como o espírito do mal, como o espírito das trevas; ataque-se nas suas fontes; entre-se nessa floresta satânica, onde se escondem o crime e a ignorância, com as armas luminosas da caridade evangélica, e do sentimento humanitário".

E os grandes tribunos, os filósofos, os poetas repetiram o brado sublime. Nas liras civilizadoras dos modernos Orfeus ressoaram não as frívolas canções, mas os generosos incitamentos. E todos à porfia, desfraldando à brisa o estandarte do progresso, entraram ousadamente no mundo tenebroso que se tratava de reevocar à luz e à vida.

Glorifiquemos os pregadores da cruzada santa, mas não olvidemos os que tomaram a seu cargo a tarefa mais humilde, mas ainda mais dolorosa, da sua realização, aqueles que, ao escutarem a voz dos grandes regeneradores, se puseram a caminho, silenciosos e dedicados, e foram lançar a semente nos sulcos abertos pelo arado da revolução social; não esqueçamos esses vultos modestos que desbastaram o mármore da utopia, para dele tirarem o hospital o a escola, os que empregaram cada momento da sua vida laboriosa em implantarem no solo da pátria a árvore da civilização, os que não pouparam nem fadigas, nem esforços, nem dispêndios para serem úteis aos seus irmãos, aqueles enfim, que, mais santos do que os lívidos ascetas, em vez de mascerarem as carnes com o cilicio estúpido, têm uma vida de abnegação, mas de abnegação útil à humanidade, e derramam com mãos pródigas o oiro, duas vezes bendito, bendito porque o produziu o trabalho, bendito ainda porque se transformou na esmola.

Portugal possui muitos desses homens, e, são eles principalmente os que a pátria repele do seu seio, os que vão em climas inóspitos amassar com as lágrimas do proscrito o pão quotidiano, e juntar, quando a fortuna os bafeja, o cabedal que eles depois empregam na sementeira santa! Entre esses homens há um, que, mais do que todos, se tem consagrado à tarefa civilizadora, que empresa os ócios do seu labutar comercial em dotar a sua pátria com um estabelecimento útil, com uma instituição benéfica, um homem cuja vida modesta tem apenas duas páginas, mas duas páginas sublimes: a do trabalho, e a da beneficência; as duas mais belas estrofes que podem constituir a singela epopeia de um homem. Esse nobre vulto é o de João Elisário de Carvalho Montenegro.

III

João Elisário de Carvalho Montenegro nasceu na Lousã, formosa vila da província do Douro, a 24 de Junho de 1824. Foram seus pais o bacharel formado em medicina Sebastião José de Carvalho Montenegro, e D. Maria Carolina Marcia de Sousa. Possuidores da áurea mediocridade que Horácio a tudo preferia, os extremosos pais quando esse fruto da sua união lhes enviou do berço o primeiro sorriso, não lhe agouraram de certo outro destino que não fosse o passar dias fiados de oiro e seda na casa paternal, rodeado da estima dos seus concidadãos, e restringindo a sua vida aos modestos deveres do agrónomo, ou aos do exercício duma profissão liberal na sua pátria. Não previam eles, todos enlevados a acalentarem a avezinha implume, que cedo viria a procela dispersar o ninho, e arrojar aos vaivéns duma existência tempestuosa essa família tranquila e inofensiva que, não tendo nunca aspirado ás sumidades, não julgava também estar exposta a provocar o raio.

Mas nesse tempo o vendaval político soprava no país inteiro, e não poupava nem as choupanas humildes, nem os palácios sumptuosos. Portugal passava pelas dolorosas provações que precederam a sua iniciação liberal. Por um erro, que nos países meridionais da Europa foi fatalíssimo à tirania, o despotismo assumiu na península hispânica e na península italiana as proporções sangrentas que até essa época se atribuíam quase unicamente à anarquia revolucionaria. Uma das grandes dificuldades, com que teve e tem de lutar em França o estabelecimento da liberdade, aliás nesse país nada e criada, é a tradição temerosa dos excessos a que na exaltação dos primeiros momentos se deixou arrastar. A tirania das ruas é o Croquemitaine dos burgueses parisienses que procuram num governo forte, embora ilimitado, a garantia das suas propriedades e da sua existência. Aqui pelo contrário o governo despótico tomou o monopólio de todos os crimes; a anarquia foi para assim dizermos organizada pelo absolutismo; a realeza do direito divino retingiu a sua purpura desbotada pelo sopro liberal que vinha do norte, no sangue de milhares de vítimas. Erro político dos nossos implacáveis adversários, que tomou felizmente impossível, até durante as agitações que encheram o nosso noviciado constitucional, o restabelecimento do trono absoluto.

A família Montenegro não escapou, no seu tranquilo retiro da Lousã, às iras dos sicários do trono e do altar. Como todos os homens ilustrados, o bacharel Sebastião José de Carvalho Montenegro professou as opiniões liberais, e desejou no intimo da alma para o seu país as vantagens, o bem estar e a dignidade duma nação livre. Mas estava longe de ser um conspirador, e, entregue aos cuidados da sua casa e da sua família, não combateu o governo absoluto senão com os seus votos ardentes pela vitória dos princípios opostos. Bastava isso e menos ainda até à desconfiança da polícia, provavelmente excitada pelas vinganças mesquinhas e pelos ódios particulares. Desterrado da Lousã, o médico liberal teve de abandonar a sua casa e de vaguear, de terra em terra, exposto aos baldões da sorte, e às perseguições dos emissários do governo, que não perdiam ocasião de torturar por todos os modos as vitimas do seu odioso sistema.

Deixando de ser vigiados pela vista experiente do dono da casa, os interesses da família Montenegro foram sensivelmente declinando. A esposa do proscrito, rodeada de cinco filhos pequenos, e à testa da administração dos seus haveres, sem conselhos nem conforto, porque os inimigos alegravam-se com o seu infortúnio, os indiferentes receavam contaminar-se aproximando-se da casa suspeita ao sombrio governo, que fazia de gerência do estado um vasto melodrama e os amigos tinham de velar pela sua própria segurança; alanceada pelas saudades do marido que lhe vagava longe, pela perspectiva da miséria que via pouco a pouco aproximar-se dela, à medida que o horizonte político se enlutava e estreitava; em lances contínuos quando algum mensageiro misterioso a vinha informar das tristes peripécias da existência do exilado, a desgraçada viúva (assim a podemos chamar) não teve forças para resistir a essas provações, com que mal poderia o ânimo da mais enérgica romana. Sucumbiu, e, mártir inocente, ao franquear os umbrais da eternidade, não logrou a triste ventura de apertar nessa hora angustiosa a mão tremente do esposo; partiu para a sombria viagem com o coração enegrecido pela incerteza e pela desesperança, deixando os filhos órfãos, a sua casa arruinada, o seu marido em perigo mortal. Nem teve ao menos a consolação de ver raiar ao longe no horizonte a fugitiva luz duma esperança nos raios do sol que inflamaram as baionetas dos bravos do Mindelo.

João Elisário tinha seis para sete anos quando perdeu o anjo protector da sua infância, e na idade em que todos têm carinhos e afagos, ele e seus irmãos viam-se entregues aos cuidados de um tutor que, por mais afectuoso que fosse, nunca lhes podia compensar essa perda irreparável, a dos conselhos afectuosos dum pai, a das palavras de mel que só lábios de mãe sabem pronunciar.

Terminou finalmente a opressão em que gemia Portugal, e as vitórias inauditas dos constitucionais, fazendo tremular a bandeira bicolor primeiro nas muralhas do Porto, depois nos réditos de Lisboa, abriram aos presos as portas das masmorras, aos exilados o caminho da pátria. O médico Montenegro voltou para a Lousã; mas, como o viajante que depois de longas perseguições regressa à terra natal e que a encontra subvertida por um terramoto, assim o infeliz lousanense não entrou na casa onde nascera senão como um romeiro de ruínas. O cataclismo social tudo destruíra, a árvore altiva, e o ninho que lhe chilreava nos ramos. Os bens tinham-se dissipado, a ventura domestica fugira nas azas do anjo que voara ao céu, e ele mesmo, o proscrito, desfalecido física e moralmente, pelas provações da miséria, não era também senão mais uma ruína no meio de tantas outras. Podia ao menos morrer na sua pátria, ver com os olhos anuviados pelas sombras da morte próxima os campos onde o sol da ventura tantas vezes o iluminara; mas os seus membros enregelados já os não podia aquecer o calor da vida, a energia faltava-lhe para recomeçar a luta. Pouco sobreviveu ao seu regresso, e de idade de 14 anos João Elisário e seus irmãos conheciam de novo as angústias da orfandade.

IV

A morte do médico Montenegro deixava desamparadas quatro crianças, porque o filho mais velho, esse já fora mar em fora procurar fortuna no Brasil. O tutor dos orphãos entendeu que não devia aplicar todos à mesma carreira para que os seus pupilos o não acusassem depois de ter tentado a sorte só por um lado. Enviou para Coimbra dois dos filhos do médico, um a formar-se em leis, outro em teologia, a irmã foi completar a sua educação feminina num convento de beneditinas da província e o que restava foi também enviado ao Brasil, para debaixo dos auspícios de seu irmão mais velho, entrar na carreira comercial. Esse destino estava reservado para João Elisário.

O Brasil é ainda hoje para as nossas províncias do norte o El dourado esplendido, cujas miragens de oiro começam a namorar o jovem camponês, apenas entra na vida. Mas o que hoje é, nenhuma comparação pode sustentar com o que foi. Dantes era uma loucura, um delírio, uma febre de emigração; todas as famílias prestavam o tributo de um filho a esse Minotauro insaciável, que raras vezes lho devolvia, e ainda mais raras lho devolvia com a opulência que para ele tinham sonhado. O Brasil era para as nossas províncias do Norte como a ilha de Greta para a Atenas dos tempos heróicos, a residência de um monstro, de um tirano insaciável, tirano e monstro que se chama cobiça! A contribuição, que ele exigia, pagavam-lha as mães com angústia, mas angústia iluminada de esperança. Os repetidos desenganos não logravam dissipar-lhes as ilusões; e mais efeito produzia a volta de um nababo carregado de oiro, tendo partido de tamancos, do que a desaparição obscura de milhares de infelizes, e a volta de outros que, minados pela doença, pela fadiga, e pelo desgosto, vinham, pálidos e exaustos, pedir de novo o seu escabelo humilde ao canto do lar paterno.

João Elisário partiu, e não sirva este exemplo venturoso de incitamento a outros. João Elisário partia em condições mais favoráveis do que o vulgo dos seus compatriotas; não levava só cabedal de energia, e de obstinação, levava também os elementos de uma instrução literária, que em todas as carreiras serve ainda que não seja senão para aclarar a inteligência. E, apesar disso, teve que travar, uma rija batalha com o destino adverso. Lutou, venceu. A Providência que já o destinava para ser um dos seus eleitos, não lhe pôs esses obstáculos no caminho, senão como as provações da iniciação, com que se experimenta a coragem do neófito. Atravessou-as com denodo, e a fortuna vencida, depois de ter em vão procurado esquivar-se, reconhecendo a mão vitoriosa, não ousou mais negar-lhe os seus sorrisos.

À história dos primeiros passos de um português inteligente no tirocínio comercial do Brasil é quase sempre um triste e doloroso drama. Já nos revelou o sr. F. Gomes de Amorim no interessante prólogo dos seus Cantos matutinos e as páginas em que nos conta a luta dos seus instintos poéticos e da prosa do negócio, a revolta do seu espírito inteligente e delicado contra a rudeza e a brutalidade do patrão, podem da mesma forma aplicar-se à historia de Carvalho Montenegro, e de tantos outros que procuram desmentir o provérbio de que a fortuna só protege os tolos.

Entre as muitas amarguras deste cálice, uma havia mais do que todas pungente para o nosso biografado. Era a saudade! Rudeza dos patrões, desventuras comerciais, privações mesmo, tudo isso ele suportava com alegre sombra, suficientemente consolado desses golpes, quando podia, depois das labutações diárias, encerrar-se no seu quarto, lendo sofregamente os livros que lhe caiam à mão. A saudade, porém, essa lacerava-o mais profundamente, porque ninguém consagra à sua partia, à sua terra natal, à sua família, um amor tão profundo. No coração do proscrito em geral acrisola-se o patriotismo, e à medida que a imagem da terra em que nasceu se vai apagando no horizonte, parece que em compensação se vai avivando na alma do exilado, que em pé na popa do navio vê azularem-se, esfumarem-se, transformarem-se afinal apenas em leves sombras as montanhas da pátria. Mas no coração de Carvalho Montenegro, coração impressionável como poucos, terreno abençoado onde qualquer afeição lança profundíssimas raízes, a saudade era mil vezes mais veemente. Não a afrouxaram os anos; pelo contrário parece que se tem robustecido, ligando-se, de um modo que, será incompreensível para quem não possua um destes corações essencialmente amoráveis, e, um afecto verdadeiro à terra que o acolheu, onde primeiro curtiu as dores do martírio, mas que depois lhe foi hospitaleira e benévola.

É tocante a amizade que ele consagra a seus irmãos, e que estes lhe retribuem com igual carinho. Duas vezes já abandonou o Brasil. para vir apertá-los ao peito, e fartar os olhos na contemplação das paisagens da sua Lousã tão querida. E, de cada vez que parte de novo, de novo a separação é fonte de lágrimas para essa família tão estreitamente ligada. O amor, que à sua pátria consagra, provam-no os benefícios que lhe, tem feito; o afecto particular, que vota à vila onde nasceu, ainda há pouco o demonstrou, dando o nome de Nova Lousã a uma plantação que fundou junto de Mogy-Mirim, na província de S. Paulo, e nada disso impede que seja também um homem abrasado no fogo do amor da humanidade, como prova defendendo, sempre que pode, as grandes causas da emancipação dos escravos, da educação popular, todas as causas santas, de cuja resolução está suspenso o futuro da civilização.

Mas a fortuna, como dissemos, veio afinal consolá lo com os seus favores, e Carvalho Montenegro, apenas se viu senhor de uns poucos de contos de reis, começou a realizar alguns dos projectos humanitários, que lhe tinham iluminado, como sonhos celestes as noites angustiosas da sua vida afadigada.

V

Voltemos esta página que é a do trabalho, e entremos na da beneficência. Dessas duas se compõe, como dissemos, a vida de João Elisário de Carvalho Montenegro. Para outra cousa não ambicionou a riqueza senão para ser útil aos seus semelhantes. Mais do que ninguém pode, ele dizer, que não é senão o depositário dos haveres que a Providência lhe concedeu; os pobres são os verdadeiros proprietários.

Os portugueses no Brasil são, pela maior parte, afincadamente, devotados à sua pátria. Quando uma grande, desgraça aflige Portugal, quando a epidemia visita as nossas cidades, e vai, como o anjo terrível no Egipto, colher em cada casa o lúgubre, tributo, quando após a epidemia a lívida miséria entra nos tugúrios pobríssimos, onde gemem as viúvas e os órfãos, quando de cada lar extinto se eleva um gemido angustioso, que se junta a outros e a outros e forma afinal o clamor imenso que ressoa, como um remorso, nas salas esplendidas dos opulentos, que expira, quase como uma blasfémia, na solidão dos templos, os portugueses residentes no Brasil erguem-se logo, tomam a iniciativa, são os primeiros a colocarem os seus nomes na lista dos que desejam pagar às vítimas do flagelo a dívida que a sociedade contrai para com os seus membros mais infelizes. Quando se intenta prestar merecida homenagem a algum desses grandes vultos que ilustraram a pátria, logo vem os nossos irmãos do Brasil associar-se à realização dessas ideias generosas. Raras vezes nesses ânimos esclarecidos e iluminados pelos fulgores da caridade e do amor da pátria deixa de encontrar apoio qualquer empresa civilizadora. A isso estamos costumados, e do louvor que tributamos a João Elisário, porque nesse nobre vulto encarnamos, para assim dizer, o símbolo de todas essas existências, tome a sua parte cada um daqueles que tiveram nas felicitações da sua consciência a primeira recompensa do bem para que se não esqueceram de contribuir.

Nestas ocasiões é sempre João Elisário o primeiro a dar o exemplo, o primeiro a despertar a generosidade dos seus companheiros de exílio. Quando a fome assolou as ilhas de Cabo Verde, quando as tristes notícias da miséria que devastara esse infeliz arquipélago vieram horrorizar os corações de todos os portugueses, foi também o nosso biografado o primeiro que na província de S. Paulo no Brasil promoveu subscrições, que trabalhou incansavelmente para, que os remédios mais prontos viessem terminar essa crise assustadora.

Alguns portugueses no Brasil reflectem que a instrução é o primeiro elemento do progresso, que o seu derramamento universal deve ser o desideratum de todos os verdadeiros liberais, pensam também que essa instrução em Portugal vegeta no mais deplorável estado, que as empresas literárias, desejosas de fazer jorrar a luz em todas as camadas sociais, recuam, desanimam diante de insuperáveis dificuldades, ou nem tentam começar esse trabalho ou desfalecem esmagadas pelo rochedo da ignorância, quando procuram arcar colar ele. Lembram-se então de constituir uma sociedade essencialmente patriótica, que, sem descurar os outros meios de favorecer a civilização da sua terra, se aplique principalmente a combater a ignorância, e a alimentar os fachos que lutam debilmente com as trevas. Para se realizar esse pensamento funda-se a Sociedade Madrepora; um dos sócios fundadores é Carvalho Montenegro.

E em quanto concebia estes grandes planos, em quanto procurava realizar em larga escala as santas utopias, não abandonava a missão mais humilde e não menos sagrada de socorrer as misérias que via em torno de si, de valer ao desamparo, de erguer os lutadores fatigados, que, menos felizes ou menos corajosos do que ele,, caiam na arena comercial. Favorecendo os que se sentiam com ânimo de arrostarem novamente os perigos do combate incessante, proporcionando aos que sucumbiam de todo o ensejo de voltarem ao menos ao lar paterno que haviam abandonado, Carvalho Montenegro tinha talvez em mais conta a benção humilde e orvalhada de lágrimas do proscrito, a quem descerrava as portas da pátria, do que o elogio pomposo dos periódicos, proclamando o civismo e a filantropia dos subscritores que acudiam a essas grandes catástrofes, que de quando em quando atravessam a vida das nações como emissários da cólera divina.

A fortuna continuava a favorece-lo; a deusa cega nem sempre se compraz em lançar os seus favores no regaço daqueles que os não merecem. Montenegro via com jubilo avultar o seu capital, não pelos sórdidos motivos do avaro ou do perdulário, mas porque podia em fim realizar o seu grande pensamento, dotar a sua terra natal, a sua querida vila da Lousã dum estabelecimento útil, que testemunhasse às gerações futuras o afecto que lhe consagram seus filhos. Esse estabelecimento foi um hospital, que já está em construção. O nosso biografado veio à Europa fazer essa doação à sua pátria. Auxiliado pelo zelo de seu irmão, o senhor padre José Daniel de Carvalho Montenegro, digno de compreender as ideias generosas que iluminam o espírito de João Elisário, pôde este colocar a primeira pedra do edifício no dia 24 de Junho de 1866 no meio do jubilo e da gratidão do povo que via, pela primeira vez um homem saído do seu seio executar o que era dantes quase exclusivamente privilégio dos monarcas.

Não se limitaram a isso os benefícios de que a Lousã é devedora a tão benemérito cidadão. A instrução popular é o grande pensamento de João Elisário. Só noutro espírito em Portugal encontramos essa ideia tão profundamente arraigada é no de António Feliciano de Castilho. O grande poeta e o modesto negociante são irmãos por estes laços de sublime fraternidade. Mas um tem a missão do iniciador, outro a do apóstolo. Aquele não cessa de advogar, na sua linguagem toda fogo e luz, a grande causa da civilização, este contribui quanto pode para realizar os sonhos de ouro do poeta. Uma escola, um instituto, uma biblioteca popular concebida na mais larga escala foram erigidas por João Elisário na sua terra. Ao lado do hospital a escola; o hospício e o templo, a caridade santa amparando com uma das mãos as vítimas da miséria, acalentando com a outra o berço intelectual, onde abre os olhos à luz uma geração, que, mais feliz do que a nossa, terá as armas da instrução para combater e esmagar a hidra que dardeja por entre os esplendores do progresso as suas mil cabeças silvadoras.

VI

A imprensa com os seus elogios, os corpos constituídos do concelho e do distrito, com os seus votos de agradecimento, o governo mesmo com uma portaria de louvor, procuraram recompensar as acções generosas de Carvalho Montenegro. Este, modesto e singelo, fugia aos aplausos e escondia-se no seu doce ninho da Lousã, onde , saboreava as doçuras da vida doméstica, de que tanto tempo estivera privado. Na formosa casa, que sua família possui nessa vila, dava ele a mais graciosa hospitalidade às pessoas que de Lisboa o iam procurar, fazendo-lhes as honras da terra com um entusiasmo ingénuo, falando nas tradições lousanenses, nos magníficos panoramas, nos hábitos e na índole dos seus compatriotas, e só raras vezes e por acaso nos benefícios que tem derramado sobre eles com mão pródiga. Também nós gozámos as doçuras dessa hospitalidade campestre, e contamos entre as horas mais doces da nossa vida, que passámos junto desse homem tão grande na sua singeleza, na sua inexcedível modéstia! A lua espalhava lá fora os seus raios na paisagem verdejante, a fresca brisa da serra vinha ondear os ramos de uma nogueira que crescia desassombrada diante da janela, e da qual João Elisário nos faltava sorrindo, como de uma irmã. Essa árvore fora plantada no dia do seu nascimento. Depois quando uma aragem melodiosa flutuava sobre as teclas do piano, e que o nosso hospedeiro, deixando expandir-se à caprichosa brisa da conversação as fragrâncias da sua alma, nos comunicava as generosas aspirações do seu patriotismo, quando nos revelava o seu modo de pensar sobre todas as questões que debate a filosofia social, e que ele encarava sempre debaixo do seu aspecto mais generoso, nós escutávamo-lo com respeito, e suponhamos, saboreando o leite e o mel da hospitalidade grega, perfumado pelos nobres sentimentos que o cristianismo inspira. Foi numa dessas noites, depois de termos voltado de uma digressão à serra e à planície, à serra onde campeava, sombria e imóvel, a negra muralha do castelo solarengo, à planície onde principiavam a alastrar-se os alicerces do hospital, foi numa dessas noites cálidas de verão, vendo as folhas da nogueira prateadas pelo alvo luar, sentindo a brisa a afagar-nos os cabelos, escutando a vaga melodia do piano, e o sussurro das conversações, que escrevemos ao correr da pena no álbum, onde cada viajante deixava um voto de felicidade, entre outros versos, os seguintes:

...................................
Amigo, é oiro bendito
o oiro que alívios planta,
como o da rainha santa
que em rosas se transformou.
O nome de D. Sisnando
depressa o tempo o consome;
porém, amigo, o teu nome
dos evos já triunfou;
que o ferro do audaz guerreiro
ceifa o loiro ensanguentado;
tem aroma abençoado
oiro que o pranto enxugou!
...........................................

E escrevi estes versos, muito do íntimo coração, e muito convencido da verdade deles. Estas glorias dos benfeitores da humanidade são tão santas quanto modestas, e a página, que a história lhes consagra, se não ostenta as letras de oiro em que se escreve o nome dos heróis, perfumasse, o que mais vale, com a suave fragrância das violetas do céu.

Uma palavra ainda; se escolhemos João Elisário de Carvalho Montenegro para o fazermos figurar nesta galeria, onde as mais diversas glórias devem entrar, não foi tanto pelo valor dos benefícios que fez à sua pátria, como pelo muito que eles significam. O nosso biografado não é milionário, está muito longe disso; a esmola que deixa cair das mãos benfazejas não é uma pequena parcela de um imenso supérfluo, é pouco menos que o necessário. A sua beneficência não tem a mínima liga de vaidade, é nobre e pura e santa como o bolo da viúva que Jesus Cristo julgou mais bem aceito do céu do que a pomposa oferta opulenta.

VII

Com íntimo júbilo juntamos à nova edição da biografia de João Elisário Carvalho Montenegro os artigos em que diferentes jornais de Portugal e Brasil prestaram homenagem ao alto merecimento do vulto, notável que biografámos. Folgamos, não por nós, mas pelo homem a quem rendíamos tributo, que estas pobres páginas despertassem um eco simpático na imprensa das duas nações irmãs, demonstrando assim que não nos cegara a parcialidade, e que não tínhamos feito senão dar voz e publicidade a um sentimento que vivia no fundo do coração de todos os que conheciam e apreciavam o sr. Carvalho Montenegro.

E uma coisa vemos nós nos artigos que transcrevemos que muito nos lisonjeia, apesar de vir em forma de censura, para o biografo. Em geral os biógrafos são acusados de enramalhetarem com nímia quantidade de flores o retrato do vulto, de cuja vida e gestos quiseram dar conta ao público, são acusados de opulentarem a moldura, e de prodigalizarem as cores na tela, de aperfeiçoarem as linhas, de enriquecerem enfim com as galas da sua própria imaginação o assunto às vezes pobre que lhes foi dado. Aqui é o contrário que sucede; a palheta do pintor é a acusada de pobreza; o biografo acusado de deficiente ou conciso; entende-se enfim que a biografia perca pela magreza, e não pela amplificação, que o herói merecia quanto mais opulento, e que enfim o escultor em vez de alterar,no pedestal o vulto que pretendia reproduzir, lhe acanhará a estatua e lhe diminuíra as proporções.

Repetimos; poucos biografados, e principalmente, em Portugal, se podem gabar de ter sido causa de que uma tal censura se pudesse fazer aos que os biografavam, e nós, mais desejosos de que o público reconheça que a nossa escolha foi justa do que renda elogios à nossa imaginação, aceitamos com júbilo a censura, e ufanamo-nos de ter sido antes modestos do que amplificatórios nos justos louvores que tecemos ao Sr. Carvalho Montenegro.

Estes artigos que juntamos à biografia completam-na e justificam-na.

Desenhando a largos traços o vulto do sr. Montenegro pusemos em relevo as suas qualidades principais, e não quisemos fazer a longa resenha dos seus actos generosos, e dos inúmeros actos de caridade e beneficência que assinalam a sua vida laboriosa e útil. Demais a mais, a pessoa que teve a bondade de nos dar os apontamentos necessários, ligada intimamente ao biografado pelos laços do parentesco, e que só acedeu ás nossas repetidas instâncias, retidas por louvável modéstia, não se espraiou tanto como desejaríamos na relação dos actos, que, ilustrando o homem que os pratica, ilustram também o nome honrado da família a que pertence. Forçados a restringirmo-nos a esses apontamentos, não podendo, pelas exigências de uma publicação quinzenal, fazer mais amplas investigações, julgámos que pondo em relevo as acções principais do nosso biografado, desenhando o vulto, tal como nós o conhecêramos, modesto e beneficente, laborioso e pensador, inflamado pelo fogo mais ardente do patriotismo, e abrindo ao mesmo tempo o generoso espírito às doces auras dos princípios humanitários teríamos desempenhado amplamente a nossa missão.

E julgamos bem, ainda que não fosse senão por termos, suscitado a confirmação espontânea, do que disséramos, da parte daqueles que tinham amplo conhecimento das nobres acções do nosso biografado. Essa confirmação é mais lisonjeira para o sr. Carvalho Montenegro, e é-nos também mais grata. Folgamos de que ás nossas palavras respondesse logo um eco simpático em Portugal e no Brasil; são títulos de honra que não podemos deixar, de adicionar à terceira edição da biografia, pergaminhos que mais nobilitam um homem de bem e um bom cidadão do que os baronatos e as comendas, porque estas confere-as muitas vezes o favor pouco perspicaz dos ministérios, aqueles sela-os o promulga-os a opinião publica imparcial e severa, o confirma-os com testemunhos de gratidão a voz popular em ambos os hemisférios.

Seguem-se os artigos a que nos referimos transcritos um do jornal português o "Conimbricense", outro do jornal brasileiro o "Correio Paulistano". Como os seus títulos o indicam, publica-se aquele em Coimbra, este na cidade de S. Paulo.

"Só há poucos dias nos chegou às mãos o 4.º. número dos Contemporaneos, que contem o retrato e biografia do nosso compatriota e amigo o sr. João Elisário de Carvalho Montenegro, residente no Brasil.

Com quanto o ilustre biografo dissesse muito a respeito do sr. Montenegro deixou todavia de faltar em coisas, que não podem nem devem passar desapercebidas, e cuja falta se deu sem dúvida pela exiguidade de apontamentos, que pessoa, talvez menos bem informada, lhe ministrou.

Quem há por aí que ignore os actos de verdadeira caridade, que o sr. Montenegro tem praticado em relação aos seus compatriotas residentes no Brasil e em Portugal?

A subscrição que iniciou e promoveu com outros compatriotas nossos na província brasileira de S. Paulo, que muito de leve se aponta na biografia, e tão bons contos de reis produziu para as vítimas do flagelo, que açoitou a nossa província africana de Cabo Verde, e tantas outras subscrições, promovidas pelo nosso amigo, não podem ficar no esquecimento.

Falando o distinto biografo na dedicação do sr. Montenegro pela causa da instrução popular no nosso país, ressalta aos olhos a falta de dizer alguma coisa sobre os muitos e numerosos jornais de literatura e instrução, que há muitos anos tem distribuído (e continua a distribuir) principalmente do "Archivo Pittoresco", de que chegou a passar por ano 500 assinaturas em S. Paulo, conservando ainda o número de 200, de que grande parte distribui grátis pelos populares da vila da Lousã e pelas escolas da mesma comarca, distribuindo prémios, e causando a imolação entre os alunos, trazem como consequência certa o adiantamento de muitos.

Mas se tanta dedicação, tanto civismo, merecem uma verdadeira recompensa, o sr. Montenegro a tem encontrado, pura, sincera, no íntimo da sua alma, pela consciência do bem que faz, na veneração que tributam todos quantos o conhecem pessoalmente, ou mesmo pela fama do seu carácter.

A imprensa do Brasil muito nos tem dito a este respeito; e nós, que vimos desembarcar na estação desta cidade, aonde era esperado por numerosos amigos, daqui, da Lousã e Poiares, em 1 de Junho de 1866, e que sabemos como uma grande parte dos moradores da Lousã abandonaram as suas casas, para virem receber o seu benfazejo conterrâneo, a cinco quilómetros de distância, e cuja entrada naquela vila, foi verdadeiramente triunfal, podemos asseverar, o que dizemos.

A voz do povo, as aclamações do dia 2 de Junho, em que entrou na Lousã, as do dia 24 em que inaugurou o hospital da sua terra, as de 31 de Outubro do mesmo ano, em que abriu o Instituo de D. Luiz I promotor da instrução popular, com a sua biblioteca, que fundou à sua custa, falam mais alto do que nós.

Algumas inexactidões se dão ainda na biografia do sr. Montenegro, como é, dizer-se que foi seu irmão mais velho, o que foi para o Brasil, quando não foi este, mas o imediato. O mais velho formou-se em direito, e é actualmente juiz de direito na comarca de Figueiró dos Vinhos.

Como esta, há algumas outras de mui pequena consideração, e que deixamos por isso de apontar.

(O Conimbricense)

"Os Contemporâneos" -— Com este título publica-se actualmente em Lisboa uma colecção de biografias de artistas, homens de letras e pessoas notáveis de Portugal saindo à luz um folheto de 15 em 15 dias, com o retrato da pessoa de quem trata o esboço biográfico.

Um nosso assinante obsequiou-nos com a remessa dos quatro primeiros folhetos publicados. O 1.º traz a biografia do notável e festejado literato Pinheiro Chagas. O 2.º do considerado estadista J. B. da Silva Cabral, que figurou na política de sua pátria há mais ou menos 20 anos atrás. O 3.º folheto vem com a biografia de Manuela Lopes Rey, espanhola, e célebre nos teatros de Portugal como actriz de primeira força e de incontestável talento, infelizmente pouco aproveitado em razão de sua morte prematura. O 4.º folheto trás o esboço biográfico do sr. Elisário de Carvalho Montenegro, conhecido e amigo nosso, e quase nosso concidadão, visto conto há muito reside entre nós, achando-se instalado nesta província como agricultor, à frente de uma colónia agrícola estabelecida em terras do município de Mogy-mirim.

Muito considerado entre nós como homem estimável pelas suas virtudes e qualidades cívicas , o sr. Montenegro não menos merece a consideração dos seus patrícios portugueses, em razão do muito que há feito de serviços de beneficência em favor da sua terra natal..

Abaixo publicamos a carta que nos enviou o nosso assinante com os folhetos biográficos de que tratamos.

IIIm.º sr. — Tenho o prazer de ofertar à redacção do "Correio Paulistano", as inclusas biografias. — "Os Contemporâneso", publicação de Lisboa.

"Rogo a v. s.ª a bondade de acrescentar à notícia que der sobre esse trabalho as inclusas linhas que se referem a biografia do sr. Monte-negro. Amigo e admirador desse distinto cavalheiro desejo preencher lacunas existentes neste escrito, linhas sem dúvida do pouco conhecimento que o biografo tem de todos os actos do biografado.

"Por este favor ser-lhe-ei eternamente grato.

"As lacunas principais que encontramos são as seguintes:

"Em primeiro lugar nota-se o esquecimento de falar no bom conceito que o sr. Monte-negro goza não só em Portugal, como talvez ainda mais no Brasil, onde é tão estimado por portugueses como por brasileiros.

"Uma prova do que avançamos, está no que se deu o ano passado por ocasião da sua retirada para Portugal.

"Em várias cidades do interior, e nesta capital, brasileiros e portugueses ofereceram-lhe lautos jantares e depois que seguiu para o Rio de Janeiro, recebeu aí, no momento de seu embarque para Lisboa uma mensagem assinada pelos seus compatriotas desta cidade significando-lhe os sentimentos que nutriam a seu respeito e desejando-lhe prospera viagem.

"Ao chegar a sua terra natal, a vila de Lousã despovoou-se, para ao longe, ir receber o seu ilustre e benfazejo conterrâneo, o fundador da casa de caridade, o amigo dos que trabalham e cultivam o espírito, para o acolherem com um verdadeiro triunfo.

"Entre nós residem alguns negociantes que acompanharam o sr. Monte-negro até a Lousã e foram testemunhas do que expendemos acerca do entusiasmo com que foi recebido este senhor.

"Quando o mesmo regressou a esta cidade, ainda está na memória de todos o modo porque aqui foi recebido, e as fe1icitações que lhe dirigiram seus compatriotas residentes em vários pontos da província, algumas das quais correram impressas.

"Do seu caracter o que diremos que não seja geralmente conhecido? Basta dizer que em seu longo tirocínio comercial nunca citou um único devedor, apesar das avultadas quantias que tem perdido.

"Esqueceu-se igualmente o biografo dos serviços prestados pelo sr. Monte-negro a colónia portuguesa em S. Paulo, onde se tem constituído por vezes o pai dos portugueses desvalidos, cognome que muitos já lhe dão.

"Releve-nos o mimoso e ilustrado autor da biografia do sr. Monte-negro as ligeiras observações que aqui fazemos, as quais não contêm a menor censura e sim um leve reparo por faltas cuja culpa não é talvez sua.

"Ao terminar as poucas linhas que escrevemos, julgamos dever acrescentar que actualmente dá-se o sr Monte-negro à cultura do algodão e do café, e, para que o seu proceder seja coerente com a enunciação de suas ideias, os trabalhadores da Nova Lousã /em nossa província) são tão livres que nem estão obrigados por engajamento ou contrato de locação de serviços. Esses homens são portugueses, afeitos ao trabalho e têm bom procedimento. Foram escolhidos pelo sr. Monte-negro que os trata com o maior agrado.

"Os que têm visitado a fazenda do sr. Montenegro são concordes em louvar o pessoal ali

existente.

"Era tudo quanto tinha a rectificar."

(O CORREIO PAULISTANO)